Poema sem nome [15]

somos a traição de nós mesmos
somos descalços para o falso
das ideias despedaçadas de uma moral
duvidosa e cruel
das hordas alheias que maltratam
o pensamento

dos anos que urgem e se proclamam
sempre melhores
porque o homem suporta o peso
do existir e se adapta a isso
porque sempre é possível um
pouco mais
sempre é possível arrancar ou forçar
um pouco mais

sempre um pouco mais
das possibilidades impossíveis
da chuva que cai pra cima
das coronhadas de amor dos pesadelos
da hipocrisia que escandaliza com o
amor
e suas pernas quebradas
da paz alçada com sangue
do amor sincronizado com a televisão
e que dá ao amor outra sublimação de
amor
e que vira contramão da contramão de
amar
e que todos choram e aplaudem como
verdadeiro
igual num final de filme em que os dois
ficam juntos

tornamo-nos mártires dessas situações
que viram alento
que viram conforto para mais um dia
com nossas orações aos seres de plástico
de gesso
de elegia floreada num mundo
tonto
vazio
e chinfrim

nossos deuses que dizem o que os
deuses dizem
das mensagens falsificadas
no telefone sem fio
sem origem
sem destino
que panfletam as virtudes
que devemos comprar no celular
com seus ditos e ritos patéticos
de passar o número do cartão
e ter nossas borboletas que amanhã
estarão mortas
e diremos isso para todos
para que consigamos alcançar aquilo
que jamais teremos

sua vida
isso mesmo
sua vida
porque sua vida não é sua
não nesse mundo
porque somos atirados
na nebulosa
que vira misticismo
– destino? –
da enganação de que
vivemos na lama
obra homônima
da tristeza
que é a constatação pura
e simples de que não vivemos

[somos passagens traiçoeiras
que não suportam a ausência]

G.C.

23.

Medimos o tempo implacável. Medimos o tempo de acordo com nossas desgraças, com nossas perdas. A medição em si não é precisa, não há tabelas, não há parâmetros que nos façam ter a mesma concepção do que realmente seria o tempo. Visto tudo isso, há certas características nos homens que me dão vontade – talvez até ao ponto de despertar em mim uma vontade rica e verdadeira – de querer compreender as engrenagens mentais, psíquicas e sentimentais que tais pessoas levam ou deveriam levar. No final desse esforço tremendo, queria poder compreender a razão dos homens, a razão de seu comportamento. Confesso que é querer compreender para poder viver melhor, nada que seja apenas observatório ou crítico. Eu sou egoísta, mas acho que compreender o homem traria em mim a diminuição do negativismo que tenho perante tantas manifestações ou de tantas notícias que sei ao acaso. A medição do tempo faz isso comigo, pois não sei explorar direito essas ruas, não sei os parafusos das engrenagens fantásticas e nem de seus perigos. Gostaria muito de saber o caminho, sem poder quebrar a grande máquina, para saber onde pisar sem machucar, sem corroer ou sem causar a febre quântica. Apenas a real medição do mundo me traria a paz para subjugar o que considero selvagem.

G.C.

Poema sem nome [14]

essa folha de papel um dia
foi abarcada pelo vento
quando ainda era uma árvore

foi roubada sua natureza
para que em algum momento
ela pudesse ser usada para algo
menor
igual um poema

deveria ser proibido
escrever o vento

G.C.

Poema sem nome [13]

eu sou nada
e ao fechar os olhos
a gente vê as armas
apontadas para nossa cabeça
as manhãs
sim
todas as manhãs
com a beleza do impossível
movendo-se em sentido oposto
a marca na pele que fica
e que vira nosso antissonho
a luz que cavalga no vento
até aquilo que nunca seremos

sim
eu sou nada

evocaremos o espetáculo
que é a tragédia
e contaremos isso
para os amigos
para as amigas
importando-se apenas conosco
sem precipitar a vontade
de aprender a história alheia
a marca deixada na pele do outro
seu antissonho
sua não-vida
o poder não nomeado de ser apenas
o que você pensa e não dar a si
a chance da beleza
da manhã
ao seu misticismo de que amanhã
será um dia melhor
graças ao senhor deus
que não responde o silêncio
sua ossada para o despertar

“basta você ter fé”
é o que te dirão
e depois começarão a cantar
a beleza dos assassinatos diários
das vidas e das mortes em vida
das vidas em morte e tanto faz
e pensaremos que está tudo bem
e virá a gargalhada ou a história de final
feliz na televisão
na tela do celular
no reality show

e a cada manhã virá um
novo desaparecimento
nossa eternidade que se espreguiça
dentro da matéria congelada
a harmonia anulada pelo
próprio homem

G.C.

Poema sem nome [12]

o esquecimento é pior que a morte
dissera ela num passado não muito
distante
suas garras anunciadas
nos ardumes do tempo
caindo devagar na ampulheta

a areia avisa o flagrante
decumbente da fuga
fuga queda
queda de tempo
seu gosto terroso
em hóstia

nesse tempo nosso
que arrebenta a pele
mastiga os olhos lentamente
e desbotam a precisão da linha
fina da ampulheta
morro abaixo
amontoado
viço de areia
que derrama
a barbárie seca
essa barbárie seca
de nossas vidas

G.C.

22.

Muitas pessoas cruzaram o meu caminho e despertaram os mais diversos sentimentos e afetos. Desde as pessoas que de alguma forma me desejaram loucamente e que partiram da mesma maneira, pela simples constatação de não conseguirem lidar com a minha loucura e solidão ou com o que ela implica em uma sociedade efêmera, material e distópica. Houve as pessoas que quiseram ficar, mas que por outras razões se tornaram apenas nódoas em minha memória. O pior de tudo isso é esquecer como são os rostos e vozes das pessoas que você um dia também foi recíproco. Essa é uma das dores que o esquecimento inflige silenciosamente.

Há também as pessoas que tomaram papéis importantes em minha vida e me fizeram poder compreender melhor os mecanismos da existência e a ter signos de afeto e preocupação. A compreensão completa não chegou para mim e tenho certeza que nunca chegará, e isso pra mim pouco importa, pois o amor não é marcado pelo entendimento e nem pela grandiosidade de uma experiência por mais íntima que ela possa parecer. A loucura dos tempos impede que o convívio e a construção solidifiquem esses sentimentos e pensamentos, para que então jamais fujam à memória, jamais fujam aos que ainda sobrevivem, que permanecem vivos em nossas vidas. Há os fantasmas que nascem nesse meio de caminho e que lembram a dor que causaram em seus fieis e verdadeiros desaparecimentos.

A beleza e a dor de existir deve ser relembrada sempre para que nos lembremos de quem somos e de como não podemos ceder à vontade de desistir.

G.C.

21.

Desistir é semelhante ao ato de apagar. Ao desistir de algo, tentamos debilmente apagar aquilo de nossas mentes, matamos grotescamente a essência, a expectativa sobre algo, sobre alguém, uma coisa qualquer. Jogamos cimento no silêncio em meio à gritaria de uma feira, na flor invisível. Enterramo-nos com nossa própria desistência e resmungamos a mesma coisa sempre numa certa hora ou num mesmo ponto cardinal na hora de ir para casa. Pouco importa se realmente existimos ou não, a felicidade não passa de uma marcha cretina no meio da paulada ou do entretanto. Sempre que me vi magoado, não desisti, mas apaguei muita coisa. Reparei nisso tarde. Vi que as pessoas remetem suas dores, suas desistências sempre ao próximo, misto de dor e de sua causa. As pessoas são como portas que interferem nas determinações quanto maior seu número ecoa por corredores. Apagar, desistir, vacilar. No final é tudo quase a mesma coisa. Seguimos a corrente, misturados na pasta de concreto, no silêncio interior no meio de uma feira, pouco importa, tenho que descer a rua, trazer as imagens, as desistências, os apagões forçados da memória, o vacilo preso no sangue. Tenho tudo isso como o fio do violino no final do quarteto. Não sou empurrado, ninguém sequer se importa se existo.

G.C.

20.

Sofremos com a concepção de uma ideia. O homem geralmente sofre com dois ou mais pensamentos sobre a imaginação do impossível e suas setas que jorram para todos os lados, quase todas tiradas de clichês baratos. É terrível ter que pensar igual a todos, ter que julgar o acaso e a incerteza de tantas ideias, principalmente quando elas ocorrem durante o dia, no meio de reuniões, de relatórios, entre uma garfada, no meio da cartografia do que é comum, tateando cegamente de olhos abertos o pouco conhecimento que temos do nosso próprio espanto. É por isso que me faço anônimo, mistério de desaparição, por isso me escondo naquilo que não sei explicar.

G.C.

19.

“Fale comigo”. Era o que ela dizia ao rapaz que a deixou. Tremia igual a asa fria de qualquer pássaro. Chorava na sombra das grades e seu som adentrava a janela que eu habitava. Pensava nos momentos de silencio se estaria cego, pensava nas perguntas elementares do homem, das pessoas que choram pelos caminhos e que não sabiam para onde ir. Para onde ela irá? Para onde eu irei? Para onde o rapaz teria ido? Questionava e tinha a sensação de que algo nos empurrava, a todos nós. Às vezes ia até a janela e lá estava ela, solitária, com seu telefone à mão. Havia a tempestade azul. “Fale comigo”, dizia ela. E o som se repetia em meio aos outros sons. Tinha medo. Era apenas mais uma alma na rua atravessando o tempo e se perguntava na substância do choro o que seria dela naqueles dias que ainda viriam. Sim, fechados para nossos desertos porque no fim – pensei – terminamos sozinhos. Pensei em todas as pessoas em várias partes de todos os lugares passando pelo mesmo momento, de como eu já passei por aquele momento, quando larguei e quando fui largado. De como a cena é quase sempre a mesma, intransponível dentro do tempo. Para onde iremos? Olhava à minha volta e sentia e relembrava a dor, da finitude de um momento insuportável, difícil de tolerar. A memória volta, o que machuca volta, e cortamos o próximo com nossos horizontes, com nossos relâmpagos partidos ebulidos pelo tempo, por seus olhos que encaram aquele que a abandonou. O olho é crepúsculo, sim, definitivamente é. Lá fora o rapaz finalmente volta e eu, fechado em meus pensamentos, senti o mesmo medo de ontem, o mesmo pensamento. Tudo é tão frágil, tão frágil. Por vezes vazio. Quando voltei à janela já não estavam mais lá.

G.C.

18.

As palavras à flor da pele, em que guarda um silêncio vergonhoso que nos revela a distância de tudo. A pressa, o momento de entrar na sala de reunião, esperar pelo que não sabemos ou sabe-se lá o quê. As pessoas caminham por uma irrealidade no decorrer dos dias. Vivem e não vivem. Caminham com pensamentos de curto prazo, pensamentos como celulares pré-pagos, onde há a pressa de ser ouvido, onde há a pressa de falar. Uma irrealidade opaca e ao mesmo tempo opressora, descartável. Não quero isso pra mim, não quero fazer parte desse sistema angustiado e insone. Essa ausência é pior que a ausência que conhecemos, é uma espécie de solidão no meio de tantos, esbarrando nas pessoas sem desviar, buscando a clemência, o perdão, a chave do paraíso. Acho que vou sempre preferir as tardes com gosto metálico na boca, ouvir o resvalo de minhas memórias e continuar contra essa irrealidade maldita dos dias, onde tudo cresce quieto, mesmo que em meu peito haja um vazio incompreensível, enfim, quieto.

G.C.

17.

Meu atonal do silêncio, para você deixaria nesse livro tudo que senti, deixaria tudo que pude ver e relatar, mas você sabe que muito se perde depois da escrita. O verdadeiro sentimento jamais será desvendado. Somos paisagens isoladas no meio das horas. Os livros que escrevi me parecem repetitivos igual a porra da vida, mas eles me enchem as mãos de alguma coisa que não sei explicar e que lentamente choram. Quantas vezes fui triste, quantas vezes fui dor, quantas vezes fui um coração que levanta toda manhã em busca de uma resposta satisfatória para o que me faz pensar e sofrer. Cortaram as asas que eu não tinha e a vida se apagou lentamente com o decorrer dos anos, o resumo do universo num espaço amarelo e profundo do papel. E você que me lê é mais uma paisagem isolada que poderá até sentir de algum modo o que senti e que entranhará em seu peito aquela distância de nós mesmos. Seremos a reclamação dos que amam destemidamente mesmo que sejamos o contrário disso. Explicaremos a grandeza a quem não sabe escrevê-la, mas que pode senti-la de um jeito que não machuca igual machuca em nós. Seremos atonais do silêncio, todos impossíveis e que se perdem com pressa, seremos nossos próprios fantasmas amargurados de tanto que sentimos e de como sentimos. E deixarei dentro desse livro o impossível do rumo silencioso, às vezes com alguma música triste que poucos conhecem. Escreverei em meu atonal de treva, escreverei em meu atonal de silêncio as palavras que cantamos no meio das horas amareladas do tempo.

G.C.

16.

Eu tinha o costume de caminhar à noite quando era mais jovem. Principalmente no verão, quando a luz permanecia por mais tempo no céu, porque era interessante em minha cabeça pensar num pôr do sol perto das oito da noite. O céu laranja que irradia uma leve e tênue tristeza. Lembro que numa dessas ocasiões choveu forte, mas era uma chuva de uma nuvem só, localizada num ponto do céu, quando você nota aquele fio de água turvando aquele pequeno espaço. Uma sinfonia silenciosa num ponto tão pequeno do universo. Vem a imagem dos pés encharcados dentro do tênis, verão em seu pico. As folhas farfalhando e o sentimento que engole e sufoca. Cada lembrança, cada faísca, cada memória. E nada – absolutamente nada – lhe será compensado. A insônia posterior é quase uma certeza, e me colocarei novamente nessas ruas pensando nos livros que li, na imagem mental que faço ao imaginar aquelas pessoas caminhando igual a mim, sem rumo, sem prescrições, sem porquês. O contraste da noite com o entardecer de antes. Luz e escuridão. A divisão que faz despertar o que éramos e o que somos sem saber qual lado é o certo, as situações que pensamos e imaginamos poder consertar num episódio hipotético, os cruzamentos morais, mentais e geográficos do que achamos ser. O terror e medo correm a pele e tudo é preenchido de escuridão, de chiaroscuros sublimes que queimam o percurso para lugar nenhum.

Era assim. Eu andava com um tênis velho, bermuda surrada, descendo e subindo as ladeiras de meu antigo bairro. Algumas horas cruzava com outras pessoas. Dentro de mim tinha o pensamento de que poderia ser ouvido, ser entendido e que elas também poderiam falar algo. Gostaria que soubessem que de alguma maneira poderiam falar aquilo que sentem sem serem julgadas, mas no fim, acho que sempre preferia a rua quando ela não tinha ninguém. Não precisava de companhia, talvez hoje ainda não precise. Só queria ser um componente invisível da noite, daquela noite.

Queria ser qualquer coisa condicional na qual pudesse me afogar e sumir no segundo seguinte, que a escuridão adentrasse meus olhos e saísse voando até a nuvem isolada de chuva mais próxima. Eu me pegava – e ainda me pego – nesses pensamentos todos os dias, sempre na mesma hora. Procurando dissolver essa ideia entre corpo e fantasia, consumar em mim a destruição dessa fronteira onde um e outro começam e acabam. Era o que fazia para esquecer o que me machucava, da dor que era por minha cara ao espelho todos os dias, da lembrança perversa de sentir gosto de metal na boca a cada desilusão, de ter que saber desesperadamente que devo representar algo que não sou, o nojo que sentia de mim por ter que fazer isso ou de fingir ser indiferente à destruição alheia, de não poder impedir a discrepância da vida.

E me perguntava nessas caminhadas como foram para todos que sentiram uma angústia semelhante dentro de seus corpos, em suas maneiras tão particulares. Do desejo infindo do apagamento. Dia, noite, chuva, sol. Tudo inútil pela falta de ambição no desejo maior de parar de existir. E parava de andar e olhava para o resto da rua por largos minutos, ansiando o que aconteceria nos passos seguintes. O corpo, sua máquina vibrante e tão silenciosa, gritando pensamentos e escurecendo caminhos para confirmar o que já sabíamos desde o entardecer de todos os dias. A percepção de uma parte de você proporciona uma liberdade falsa e esmagadora de sonhos. E quando nos vemos a primeira vez com então vinte e tanto anos, depois do fim de um casamento infeliz, completamente infeliz. Aquela separação mental que dá a liberdade, o marco zero, a possibilidade de conseguir de se virar para trás e enxergar quem você era quando, muito tempo atrás, ainda moleque, vislumbrava o instante mágico do tempo em que agora se encontra. Encontros e desencontros. E virei para trás e olhei para o passado, triste – obviamente – e movido pelas circunstâncias do momento. Imaginar como os olhares dos dois se encontraram, um deles cheio de vida, o outro um pouco mais sem cor. E o mais velho viu o questionamento ferrenho no olhar do mais novo: afinal, quem você se tornou, o que foi capaz de fazer em vida? E o velho teria sido obrigado a responder, ainda sem pensar em sair correndo: Nada, só queria subir para uma nuvem errática, mas andei por toda parte, escrevi livros sobre o que vi e senti, compus canções inúteis, levantei infinitas perguntas para mim e para diversas pessoas, mas ainda não consegui chegar naquela nuvem. Fecho os olhos. A nuvem parece um lugar impossível pra mim. Um lugar tão pequeno, mas enorme ao mesmo tempo. Afinal, qual é o problema? Se é que existe um problema. Queria poder dizer “amanhã partirei”, e compreenderia nisso uma mudança, uma ruptura com o que era e o que serei. Por que desejo algo tão simples aos olhos alheios? Volto a andar, queria caminhar até amanhecer, porque se penso um pouco sou obrigado a parar de andar. Não é toda a dor que pode ser aniquilada. Juro, eu tentei, tentei muito afastar esses caminhos, essas dores, tentei afastar essas coisas de mim.

Lembro da ladeira que subia todo dia pra ir trabalhar. Do ruído interno que a dor me causava nas pernas. As subidas que se você parar para descansar será incapaz de continuar. Uma parada de pernas que te atinge rápido e com força que então fica difícil respirar. E agora, nas caminhadas nas noites escuras e disformes são a única forma de salvação, a noite que você pode atravessar dançando do jeito que desejar, como em câmera lenta, igual Jesus teria feito na água, ou dentro da imaginação fantástica, no qual há uma ilha onde vive uma mulher que sabe ir até a nuvem; e se desloca pela água escura de uma maneira bonita, pomposa e esguia. Aquele dia da ladeira. Lembro que ia chover. Pra mim sempre vai chover. E escrevi num caderno: É a mesma chuva que costumava cair na minha infância, sempre antes de dormir. Ela cai sobre mim quando vou caminhar, ela cai sobre mim quando olho o entardecer, ela cai sobre mim quando volto do trabalho, ela cai sobre mim em meu quarto. E então a mulher que sabe o caminho para a nuvem aponta o dedo na direção da chuva e some. Tudo some. Não é isso que estou querendo sentir, mas acho que posso dizer que eu tenho um problema. Pois eu devia estar em casa, numa tristeza diferente dessa, mas não consigo me acomodar, pois a cama e a visão que tenho das paredes se tornam uma prisão da minha mente, tudo se apequena e por isso saía todas as noites. A nuvem. Acho que a nuvem é o nome que dou para o esquecimento. A mulher é aquela que vai me levar um dia para o esquecimento de mim, na rua de chão batido e não terei vergonha de não olhar pra trás quando esse dia chegar, que essa mudança atue de forma tão absoluta como a criança que risca o desenho que ela mesma fez, que no fim não se possa mais ouvir nada no tão sonhado esquecimento, a não ser o frágil som da ausência. Outros buscam a mudança, do mesmo modo que a busquei desesperadamente. Querem mudar a si mesmos – muitas vezes em vão – , mas para conseguir isso é preciso atravessar a noite, penetrar no pensamento dessas caminhadas e talvez deixar que a chuva modifique seus corpos e limpe as suas almas; deixar que a chuva os reeduque para coisas simples.

Não parece fazer muito sentido, eu sei, mas caminhar todas as noites também é se perder; seguir em frente quando mal se pode enxergar as próprias ideias: sentir, existir, pensar, e ainda assim ser invisível aos outros. Eu ainda sou invisível aos outros e no começo eu sofri por isso. Fechava os olhos ao pensar nisso e saía da rua em que estava para pegar um daqueles caminhos de pequenas vilas. Conheço o caminho e sei onde preciso virar; memorizei o caminho ao longo dos anos. Minha nuvem no chão. O amor não é infinito, pensei. Nada é infinito. Essa era a verdade. A eternidade veio abaixo e de repente a repulsa que senti me esvaziou para o que importava. O que importava, nesse caso, era andar rápido e só isso, sem olhar para trás, como fez o meu eu mais jovem, e encarar o próprio olhar do outro lado. Abrir os olhos deveria ser um ato de prudência, mas encarar a escuridão é extenuante. Abertos. Fechados. Tudo a mesma merda, penso, e uma melancolia vai se acumulando em mim, quando acontece alguma coisa contra a qual nada posso fazer. Penso de novo no passado. Consigo vê-lo, é claro, e não consigo decifrar o seu olhar, porque esqueci o que eu era. “Ei, você, caralho, olhe para cá!”, é como reajo ao desacontecimento.

A estranheza, o divino, o andar pela noite. Refletir sobre uma vida cheia de vazios. Vazios que se descobrem em algo, na permanência da nuvem. O reino. Sim, definitivamente o reino onde nada mais inútil é realmente necessário, porque aqui desse lado da rua tudo é invisível aos olhos. Isso me lembrou que recentemente entrei numa igreja. Não lembro exatamente o que vestia, mas era algo simples. Inclinei meus olhos para a imagem gigante de Jesus na cruz, e admiti sem hesitar que concordava com suas palavras, seus ditos políticos. Não sua ideia religiosa, como todos ali presentes faziam. O resultado é constrangimento e desgosto pela deturpação de sua palavra, de seu ideal. Eu me perguntava a cada minuto o que estava fazendo ali, por que permaneci tantos anos em dúvida. Permaneci na espera de ter uma resposta para aliviar a dor. Sim, foi o que fiz na minha juventude. E eram o que eles faziam ali naquele momento. Mas a completude não vem dali, mas da nuvem. Sim. Eu tenho certeza que é daquela pequena nuvem. Penso muito nisso quando estou sozinho, quando ouço outras pessoas conversando nos apartamentos vizinhos, os passos, as portas se abrindo e fechando. As palavras perdidas são tempestades secas, que desdobram a solidão diante de tudo. As pedras, o sorriso, o olhar, a grama, os olhos, tudo. Não se percebe o tempo no qual elas se perdem para vivar uma outra coisa, uma malha metálica que protege a facada, o sentido. E tudo se some na rotina. E não estamos bem, mas representamos tudo quando perguntados. E o mundo se choca com sua nuvem coroada, com sua boca que solta a palavra automática. Estilhaços de algo que inventamos. E tudo é silêncio na rua. Sempre foi, mesmo de dia, e sabemos disso. Tudo sempre esteve em silêncio, não percebe? E tudo piora com o tempo, exceto quando estamos com aqueles que nos entendem sem o dedo severo do julgamento, poder conversar sobre qualquer coisa na certeza de não ter os anos de prisão contados na mente. Ler sobre alguma história da dinastia Ming e tirar alguma sabedoria, submergir na arte que julgo perfeita dentro de sua imperfeição, ter como saciar dentro de mim e dos que me cercam da necessidade de unir beleza e harmonia ao mesmo tempo. Igrejas, templos, sua casa, a nuvem, a rua… tudo isso com suas saídas de emergência. E no final o grito: “eu estou bem, não se preocupem”. Sorrio e sigo para qualquer lugar. É o que fiz, é o que faço até minha fuga para um próximo entardecer. E volto a lembrar da ladeira, de como a subia e a descia na volta do trabalho. A casa que morei sumia lentamente de vista. Não sei por que sou desse jeito, não sei porque sinto essas coisas e também não sei porque questiono essas coisas, não sei se é comum, não sei o que é raro, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente a mim, mas para ser bem franco, é insuportável. Sim. Insuportável. Que o mundo não seja pleno, que o mundo não seja belo e completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo e voar para a nuvem. Sim, é o que eu quero. Que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence – mas nada me pertence –, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas na igreja, as pessoas bebendo nos bares e conversando sobre o que elas não conhecem; dar-lhes minha saudação final, íntima, meu adeus para sempre. E se tenho que fazer isso para poder evoluir então que sentido realmente faz? Qual?

Uma das Morellianas d’O Jogo da Amarelinha me fez isso, os homens que largaram o túnel no Monte Brasco, deixaram tudo para trás e foram se agarrar à poesia do ato, a filosofia, tudo – porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; não queriam elevar-se, queriam ter o que eles apenas tinham. Queriam cruzar a fronteira para dar em qualquer lugar. Assim, quando surgiu a oportunidade ele fugiram do túnel e foram cavando até saírem na casa de um professor. E nesse capítulo em especial, fica claro que os operários que estavam do outro lado deveriam ter seguido esse exemplo em vez de se obstinarem em um túnel inexistente, como é o caso de tantos poetas, músicos, pintores, seres que caminham na madrugada, com mais de metade do corpo para fora de seu próprio corpo, a altas horas da noite. Wishful thinking. É notório perceber que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais – até agora – tenha tomado consciência plena disso. É claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Morelli. É óbvio para todos que leram, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Sim, definitivamente. Mas tenho certeza que nada no mundo me faria ter o mesmo destino que os operários do Monte Brasco, jamais terminaria saindo em algum lugar que não fosse realmente calculado. Não. Nada desesperado – a não ser dentro de mim mesmo –, no meio dos oceanos de gente dos calçadões, ou dentro de um escritório entre cegos e surdos, e é possível que me falte a coragem necessária e tão arrebatadora, tampouco faria como os operários do Brasco e me tornaria uma outra pessoa, feliz. Sim, talvez feliz. Poder responder ao meu outro eu, tentando reunir tudo dentro de meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo – e por que não? –, juntando o eu a meu outro eu, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregado finalmente. Numa obsessão de tentar fundi-los nessa única pessoa que sou, mas não consigo, não posso fazer isso porque na realidade não há espaço suficiente. E por que desejo a nuvem? Não, não. Sei que posso acabar partindo ao meio, igual sempre aconteceu quando tentei fazer isso. Enquanto for esse que sou agora, haverei eternamente de sair caminhando pela noite como fiz, esquecido por todos, esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando em meus olhos, em meus dedos, em minha vida, em minha nuvem tão sonhada. Sim, eu sei disso. E naquela noite as nuvens se separaram, correram em diversas direções e em grande velocidade como se algo realmente importante estivesse prestes a acontecer. Não era nada, mas sempre queremos que seja algo. Amor, sorriso, a rua, a nuvem, as pessoas, o entardecer, o andar, o eu, o outro eu, você, ela, ele. Qualquer coisa. Sinto a cisão entre o que sou, o que fui e o que serei. Dói.

G.C.

Poema sem nome [11]

procuramos marcar o tempo
fatiar os anos
meses
dias
horas
segundos
e sabe-se lá mais o quê
e o que sobra não tem mais
para o amor
e viramos restos que passam
os dias
procurando a pessoa
que nos tire o vazio
porque a lucidez foi
penhorada
entregue aos senhores
do seu tempo
e somos isso
a esperança depositada
no grande Girassol
que rasteja
pisada
por tanta gente
apressada
fatiando sua vida em tempos
precisos
e também inexatos
em busca da glória
amorosa
profissional
econômica
mas sem acreditar
no meio
nesse meio que abre ferida
e que no fim é aprisionado
por qualquer coisa
que você jamais terá controle

amores e restos de gente
que rastejam

G.C.

15.

Depois daquelas horas juntos, pensava dias depois, caminhando sozinho pelas ruas. Pensei durante muito tempo que deveria ter dito alguma coisa que não disse. Ao escrever, agora, pensei na urgência disso, de chegar ao seu pé e dizer qualquer coisa. Dizer-lhe qualquer coisa como se fosse a última, numa redenção magnífica e primordial.

No caminho para o trabalho, durante muitas vezes, desliguei o ouvido de fora pra ouvir você todas as manhãs. Pensei naquela intimidade que o som nos traz do interior de nossas ruelas. Nessa intempestividade de haver a matéria que me faz, nessa vida que deu o dom (pelo menos alguma coisa!) da reflexão, estação após estação de metrô. Ao chegar, acabo dirigindo-me ao boteco vagabundo pra tomar um café. Percebo que tudo é radicalmente solitário. Tudo está caído sobre outro mundo que é impossível. Fecho a mão dentro dos bolsos num ritual patético e percebo como é belo este movimento que nos leva ao chão. Imagino que agora você esteja repousando num sono quase inconsciente, e aqui vou pela rua em direção ao trabalho. São nove horas e penso nos seus gestos absolutos. Sinto isso de uma forma quase desesperada, com a mão dentro dos bolsos, numa gritaria em silêncio.

G.C.

14.

Para meu amigo M.

Logo fará um mês que a barca afundou, Marcio. Sua barca em pedaços no fim de qualquer fim sem coisa, buscando a palavra correta para relatar o que se passava. A locução solitária e silenciosa do mundo, da vida carregando o olho de fotografias que a cada dia ficavam mais brancas. E a cada ano uma idade vigiada pelo interruptor apagado cada dia com mais tristeza. E agora tudo parou, talvez como você quisesse, porque pensando pra trás parecia sua vontade velada.

Penso nas memórias esquecidas, nas músicas perdidas em nossas conversas. Tudo pouco a pouco perdido na memória que me resta – e que você sabe – e que é fraca. Tudo não herdado. Esta noite antes de dormir pensei numa barca afundando com seu capitão, havia uma música. O movimento do vento terminaria de virá-la e conseguiria finalmente dormir. O vento é memória, meu amigo, é vento que corre, que apaga as velas que insistem na chama, igual palavras perdidas em meio ao solitário e silencioso modo de narrar o mundo.

Bater um vento, acender uma vela se fosse um rito da memória que sobrevive à própria memória que venta. A vaidade de acharmos que entendemos a morte quando somente pode ser compreendida na palavra, na música ou numa tela que ainda está molhada. Quando isso acontece é quando nos aproximamos de nós mesmos.

A barca afundou, mas a lembrança será vigiada enquanto eu estiver aqui, é uma promessa que faço enquanto esperamos o jubileu e seus restos que insistem na luz suspensa que a saudade descreve e impõe à palavra inexata, desértica e errante. Inevitavelmente sua.

G.C.