Eu tinha o costume de caminhar à noite quando era mais jovem. Principalmente no verão, quando a luz permanecia por mais tempo no céu, porque era interessante em minha cabeça pensar num pôr do sol perto das oito da noite. O céu laranja que irradia uma leve e tênue tristeza. Lembro que numa dessas ocasiões choveu forte, mas era uma chuva de uma nuvem só, localizada num ponto do céu, quando você nota aquele fio de água turvando aquele pequeno espaço. Uma sinfonia silenciosa num ponto tão pequeno do universo. Vem a imagem dos pés encharcados dentro do tênis, verão em seu pico. As folhas farfalhando e o sentimento que engole e sufoca. Cada lembrança, cada faísca, cada memória. E nada – absolutamente nada – lhe será compensado. A insônia posterior é quase uma certeza, e me colocarei novamente nessas ruas pensando nos livros que li, na imagem mental que faço ao imaginar aquelas pessoas caminhando igual a mim, sem rumo, sem prescrições, sem porquês. O contraste da noite com o entardecer de antes. Luz e escuridão. A divisão que faz despertar o que éramos e o que somos sem saber qual lado é o certo, as situações que pensamos e imaginamos poder consertar num episódio hipotético, os cruzamentos morais, mentais e geográficos do que achamos ser. O terror e medo correm a pele e tudo é preenchido de escuridão, de chiaroscuros sublimes que queimam o percurso para lugar nenhum.
Era assim. Eu andava com um tênis velho, bermuda surrada, descendo e subindo as ladeiras de meu antigo bairro. Algumas horas cruzava com outras pessoas. Dentro de mim tinha o pensamento de que poderia ser ouvido, ser entendido e que elas também poderiam falar algo. Gostaria que soubessem que de alguma maneira poderiam falar aquilo que sentem sem serem julgadas, mas no fim, acho que sempre preferia a rua quando ela não tinha ninguém. Não precisava de companhia, talvez hoje ainda não precise. Só queria ser um componente invisível da noite, daquela noite.
Queria ser qualquer coisa condicional na qual pudesse me afogar e sumir no segundo seguinte, que a escuridão adentrasse meus olhos e saísse voando até a nuvem isolada de chuva mais próxima. Eu me pegava – e ainda me pego – nesses pensamentos todos os dias, sempre na mesma hora. Procurando dissolver essa ideia entre corpo e fantasia, consumar em mim a destruição dessa fronteira onde um e outro começam e acabam. Era o que fazia para esquecer o que me machucava, da dor que era por minha cara ao espelho todos os dias, da lembrança perversa de sentir gosto de metal na boca a cada desilusão, de ter que saber desesperadamente que devo representar algo que não sou, o nojo que sentia de mim por ter que fazer isso ou de fingir ser indiferente à destruição alheia, de não poder impedir a discrepância da vida.
E me perguntava nessas caminhadas como foram para todos que sentiram uma angústia semelhante dentro de seus corpos, em suas maneiras tão particulares. Do desejo infindo do apagamento. Dia, noite, chuva, sol. Tudo inútil pela falta de ambição no desejo maior de parar de existir. E parava de andar e olhava para o resto da rua por largos minutos, ansiando o que aconteceria nos passos seguintes. O corpo, sua máquina vibrante e tão silenciosa, gritando pensamentos e escurecendo caminhos para confirmar o que já sabíamos desde o entardecer de todos os dias. A percepção de uma parte de você proporciona uma liberdade falsa e esmagadora de sonhos. E quando nos vemos a primeira vez com então vinte e tanto anos, depois do fim de um casamento infeliz, completamente infeliz. Aquela separação mental que dá a liberdade, o marco zero, a possibilidade de conseguir de se virar para trás e enxergar quem você era quando, muito tempo atrás, ainda moleque, vislumbrava o instante mágico do tempo em que agora se encontra. Encontros e desencontros. E virei para trás e olhei para o passado, triste – obviamente – e movido pelas circunstâncias do momento. Imaginar como os olhares dos dois se encontraram, um deles cheio de vida, o outro um pouco mais sem cor. E o mais velho viu o questionamento ferrenho no olhar do mais novo: afinal, quem você se tornou, o que foi capaz de fazer em vida? E o velho teria sido obrigado a responder, ainda sem pensar em sair correndo: Nada, só queria subir para uma nuvem errática, mas andei por toda parte, escrevi livros sobre o que vi e senti, compus canções inúteis, levantei infinitas perguntas para mim e para diversas pessoas, mas ainda não consegui chegar naquela nuvem. Fecho os olhos. A nuvem parece um lugar impossível pra mim. Um lugar tão pequeno, mas enorme ao mesmo tempo. Afinal, qual é o problema? Se é que existe um problema. Queria poder dizer “amanhã partirei”, e compreenderia nisso uma mudança, uma ruptura com o que era e o que serei. Por que desejo algo tão simples aos olhos alheios? Volto a andar, queria caminhar até amanhecer, porque se penso um pouco sou obrigado a parar de andar. Não é toda a dor que pode ser aniquilada. Juro, eu tentei, tentei muito afastar esses caminhos, essas dores, tentei afastar essas coisas de mim.
Lembro da ladeira que subia todo dia pra ir trabalhar. Do ruído interno que a dor me causava nas pernas. As subidas que se você parar para descansar será incapaz de continuar. Uma parada de pernas que te atinge rápido e com força que então fica difícil respirar. E agora, nas caminhadas nas noites escuras e disformes são a única forma de salvação, a noite que você pode atravessar dançando do jeito que desejar, como em câmera lenta, igual Jesus teria feito na água, ou dentro da imaginação fantástica, no qual há uma ilha onde vive uma mulher que sabe ir até a nuvem; e se desloca pela água escura de uma maneira bonita, pomposa e esguia. Aquele dia da ladeira. Lembro que ia chover. Pra mim sempre vai chover. E escrevi num caderno: É a mesma chuva que costumava cair na minha infância, sempre antes de dormir. Ela cai sobre mim quando vou caminhar, ela cai sobre mim quando olho o entardecer, ela cai sobre mim quando volto do trabalho, ela cai sobre mim em meu quarto. E então a mulher que sabe o caminho para a nuvem aponta o dedo na direção da chuva e some. Tudo some. Não é isso que estou querendo sentir, mas acho que posso dizer que eu tenho um problema. Pois eu devia estar em casa, numa tristeza diferente dessa, mas não consigo me acomodar, pois a cama e a visão que tenho das paredes se tornam uma prisão da minha mente, tudo se apequena e por isso saía todas as noites. A nuvem. Acho que a nuvem é o nome que dou para o esquecimento. A mulher é aquela que vai me levar um dia para o esquecimento de mim, na rua de chão batido e não terei vergonha de não olhar pra trás quando esse dia chegar, que essa mudança atue de forma tão absoluta como a criança que risca o desenho que ela mesma fez, que no fim não se possa mais ouvir nada no tão sonhado esquecimento, a não ser o frágil som da ausência. Outros buscam a mudança, do mesmo modo que a busquei desesperadamente. Querem mudar a si mesmos – muitas vezes em vão – , mas para conseguir isso é preciso atravessar a noite, penetrar no pensamento dessas caminhadas e talvez deixar que a chuva modifique seus corpos e limpe as suas almas; deixar que a chuva os reeduque para coisas simples.
Não parece fazer muito sentido, eu sei, mas caminhar todas as noites também é se perder; seguir em frente quando mal se pode enxergar as próprias ideias: sentir, existir, pensar, e ainda assim ser invisível aos outros. Eu ainda sou invisível aos outros e no começo eu sofri por isso. Fechava os olhos ao pensar nisso e saía da rua em que estava para pegar um daqueles caminhos de pequenas vilas. Conheço o caminho e sei onde preciso virar; memorizei o caminho ao longo dos anos. Minha nuvem no chão. O amor não é infinito, pensei. Nada é infinito. Essa era a verdade. A eternidade veio abaixo e de repente a repulsa que senti me esvaziou para o que importava. O que importava, nesse caso, era andar rápido e só isso, sem olhar para trás, como fez o meu eu mais jovem, e encarar o próprio olhar do outro lado. Abrir os olhos deveria ser um ato de prudência, mas encarar a escuridão é extenuante. Abertos. Fechados. Tudo a mesma merda, penso, e uma melancolia vai se acumulando em mim, quando acontece alguma coisa contra a qual nada posso fazer. Penso de novo no passado. Consigo vê-lo, é claro, e não consigo decifrar o seu olhar, porque esqueci o que eu era. “Ei, você, caralho, olhe para cá!”, é como reajo ao desacontecimento.
A estranheza, o divino, o andar pela noite. Refletir sobre uma vida cheia de vazios. Vazios que se descobrem em algo, na permanência da nuvem. O reino. Sim, definitivamente o reino onde nada mais inútil é realmente necessário, porque aqui desse lado da rua tudo é invisível aos olhos. Isso me lembrou que recentemente entrei numa igreja. Não lembro exatamente o que vestia, mas era algo simples. Inclinei meus olhos para a imagem gigante de Jesus na cruz, e admiti sem hesitar que concordava com suas palavras, seus ditos políticos. Não sua ideia religiosa, como todos ali presentes faziam. O resultado é constrangimento e desgosto pela deturpação de sua palavra, de seu ideal. Eu me perguntava a cada minuto o que estava fazendo ali, por que permaneci tantos anos em dúvida. Permaneci na espera de ter uma resposta para aliviar a dor. Sim, foi o que fiz na minha juventude. E eram o que eles faziam ali naquele momento. Mas a completude não vem dali, mas da nuvem. Sim. Eu tenho certeza que é daquela pequena nuvem. Penso muito nisso quando estou sozinho, quando ouço outras pessoas conversando nos apartamentos vizinhos, os passos, as portas se abrindo e fechando. As palavras perdidas são tempestades secas, que desdobram a solidão diante de tudo. As pedras, o sorriso, o olhar, a grama, os olhos, tudo. Não se percebe o tempo no qual elas se perdem para vivar uma outra coisa, uma malha metálica que protege a facada, o sentido. E tudo se some na rotina. E não estamos bem, mas representamos tudo quando perguntados. E o mundo se choca com sua nuvem coroada, com sua boca que solta a palavra automática. Estilhaços de algo que inventamos. E tudo é silêncio na rua. Sempre foi, mesmo de dia, e sabemos disso. Tudo sempre esteve em silêncio, não percebe? E tudo piora com o tempo, exceto quando estamos com aqueles que nos entendem sem o dedo severo do julgamento, poder conversar sobre qualquer coisa na certeza de não ter os anos de prisão contados na mente. Ler sobre alguma história da dinastia Ming e tirar alguma sabedoria, submergir na arte que julgo perfeita dentro de sua imperfeição, ter como saciar dentro de mim e dos que me cercam da necessidade de unir beleza e harmonia ao mesmo tempo. Igrejas, templos, sua casa, a nuvem, a rua… tudo isso com suas saídas de emergência. E no final o grito: “eu estou bem, não se preocupem”. Sorrio e sigo para qualquer lugar. É o que fiz, é o que faço até minha fuga para um próximo entardecer. E volto a lembrar da ladeira, de como a subia e a descia na volta do trabalho. A casa que morei sumia lentamente de vista. Não sei por que sou desse jeito, não sei porque sinto essas coisas e também não sei porque questiono essas coisas, não sei se é comum, não sei o que é raro, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente a mim, mas para ser bem franco, é insuportável. Sim. Insuportável. Que o mundo não seja pleno, que o mundo não seja belo e completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo e voar para a nuvem. Sim, é o que eu quero. Que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence – mas nada me pertence –, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas na igreja, as pessoas bebendo nos bares e conversando sobre o que elas não conhecem; dar-lhes minha saudação final, íntima, meu adeus para sempre. E se tenho que fazer isso para poder evoluir então que sentido realmente faz? Qual?
Uma das Morellianas d’O Jogo da Amarelinha me fez isso, os homens que largaram o túnel no Monte Brasco, deixaram tudo para trás e foram se agarrar à poesia do ato, a filosofia, tudo – porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; não queriam elevar-se, queriam ter o que eles apenas tinham. Queriam cruzar a fronteira para dar em qualquer lugar. Assim, quando surgiu a oportunidade ele fugiram do túnel e foram cavando até saírem na casa de um professor. E nesse capítulo em especial, fica claro que os operários que estavam do outro lado deveriam ter seguido esse exemplo em vez de se obstinarem em um túnel inexistente, como é o caso de tantos poetas, músicos, pintores, seres que caminham na madrugada, com mais de metade do corpo para fora de seu próprio corpo, a altas horas da noite. Wishful thinking. É notório perceber que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais – até agora – tenha tomado consciência plena disso. É claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Morelli. É óbvio para todos que leram, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Sim, definitivamente. Mas tenho certeza que nada no mundo me faria ter o mesmo destino que os operários do Monte Brasco, jamais terminaria saindo em algum lugar que não fosse realmente calculado. Não. Nada desesperado – a não ser dentro de mim mesmo –, no meio dos oceanos de gente dos calçadões, ou dentro de um escritório entre cegos e surdos, e é possível que me falte a coragem necessária e tão arrebatadora, tampouco faria como os operários do Brasco e me tornaria uma outra pessoa, feliz. Sim, talvez feliz. Poder responder ao meu outro eu, tentando reunir tudo dentro de meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo – e por que não? –, juntando o eu a meu outro eu, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregado finalmente. Numa obsessão de tentar fundi-los nessa única pessoa que sou, mas não consigo, não posso fazer isso porque na realidade não há espaço suficiente. E por que desejo a nuvem? Não, não. Sei que posso acabar partindo ao meio, igual sempre aconteceu quando tentei fazer isso. Enquanto for esse que sou agora, haverei eternamente de sair caminhando pela noite como fiz, esquecido por todos, esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando em meus olhos, em meus dedos, em minha vida, em minha nuvem tão sonhada. Sim, eu sei disso. E naquela noite as nuvens se separaram, correram em diversas direções e em grande velocidade como se algo realmente importante estivesse prestes a acontecer. Não era nada, mas sempre queremos que seja algo. Amor, sorriso, a rua, a nuvem, as pessoas, o entardecer, o andar, o eu, o outro eu, você, ela, ele. Qualquer coisa. Sinto a cisão entre o que sou, o que fui e o que serei. Dói.
G.C.
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