21.

Desistir é semelhante ao ato de apagar. Ao desistir de algo, tentamos debilmente apagar aquilo de nossas mentes, matamos grotescamente a essência, a expectativa sobre algo, sobre alguém, uma coisa qualquer. Jogamos cimento no silêncio em meio à gritaria de uma feira, na flor invisível. Enterramo-nos com nossa própria desistência e resmungamos a mesma coisa sempre numa certa hora ou num mesmo ponto cardinal na hora de ir para casa. Pouco importa se realmente existimos ou não, a felicidade não passa de uma marcha cretina no meio da paulada ou do entretanto. Sempre que me vi magoado, não desisti, mas apaguei muita coisa. Reparei nisso tarde. Vi que as pessoas remetem suas dores, suas desistências sempre ao próximo, misto de dor e de sua causa. As pessoas são como portas que interferem nas determinações quanto maior seu número ecoa por corredores. Apagar, desistir, vacilar. No final é tudo quase a mesma coisa. Seguimos a corrente, misturados na pasta de concreto, no silêncio interior no meio de uma feira, pouco importa, tenho que descer a rua, trazer as imagens, as desistências, os apagões forçados da memória, o vacilo preso no sangue. Tenho tudo isso como o fio do violino no final do quarteto. Não sou empurrado, ninguém sequer se importa se existo.

G.C.

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20.

Sofremos com a concepção de uma ideia. O homem geralmente sofre com dois ou mais pensamentos sobre a imaginação do impossível e suas setas que jorram para todos os lados, quase todas tiradas de clichês baratos. É terrível ter que pensar igual a todos, ter que julgar o acaso e a incerteza de tantas ideias, principalmente quando elas ocorrem durante o dia, no meio de reuniões, de relatórios, entre uma garfada, no meio da cartografia do que é comum, tateando cegamente de olhos abertos o pouco conhecimento que temos do nosso próprio espanto. É por isso que me faço anônimo, mistério de desaparição, por isso me escondo naquilo que não sei explicar.

G.C.

19.

“Fale comigo”. Era o que ela dizia ao rapaz que a deixou. Tremia igual a asa fria de qualquer pássaro. Chorava na sombra das grades e seu som adentrava a janela que eu habitava. Pensava nos momentos de silencio se estaria cego, pensava nas perguntas elementares do homem, das pessoas que choram pelos caminhos e que não sabiam para onde ir. Para onde ela irá? Para onde eu irei? Para onde o rapaz teria ido? Questionava e tinha a sensação de que algo nos empurrava, a todos nós. Às vezes ia até a janela e lá estava ela, solitária, com seu telefone à mão. Havia a tempestade azul. “Fale comigo”, dizia ela. E o som se repetia em meio aos outros sons. Tinha medo. Era apenas mais uma alma na rua atravessando o tempo e se perguntava na substância do choro o que seria dela naqueles dias que ainda viriam. Sim, fechados para nossos desertos porque no fim – pensei – terminamos sozinhos. Pensei em todas as pessoas em várias partes de todos os lugares passando pelo mesmo momento, de como eu já passei por aquele momento, quando larguei e quando fui largado. De como a cena é quase sempre a mesma, intransponível dentro do tempo. Para onde iremos? Olhava à minha volta e sentia e relembrava a dor, da finitude de um momento insuportável, difícil de tolerar. A memória volta, o que machuca volta, e cortamos o próximo com nossos horizontes, com nossos relâmpagos partidos ebulidos pelo tempo, por seus olhos que encaram aquele que a abandonou. O olho é crepúsculo, sim, definitivamente é. Lá fora o rapaz finalmente volta e eu, fechado em meus pensamentos, senti o mesmo medo de ontem, o mesmo pensamento. Tudo é tão frágil, tão frágil. Por vezes vazio. Quando voltei à janela já não estavam mais lá.

G.C.

18.

As palavras à flor da pele, em que guarda um silêncio vergonhoso que nos revela a distância de tudo. A pressa, o momento de entrar na sala de reunião, esperar pelo que não sabemos ou sabe-se lá o quê. As pessoas caminham por uma irrealidade no decorrer dos dias. Vivem e não vivem. Caminham com pensamentos de curto prazo, pensamentos como celulares pré-pagos, onde há a pressa de ser ouvido, onde há a pressa de falar. Uma irrealidade opaca e ao mesmo tempo opressora, descartável. Não quero isso pra mim, não quero fazer parte desse sistema angustiado e insone. Essa ausência é pior que a ausência que conhecemos, é uma espécie de solidão no meio de tantos, esbarrando nas pessoas sem desviar, buscando a clemência, o perdão, a chave do paraíso. Acho que vou sempre preferir as tardes com gosto metálico na boca, ouvir o resvalo de minhas memórias e continuar contra essa irrealidade maldita dos dias, onde tudo cresce quieto, mesmo que em meu peito haja um vazio incompreensível, enfim, quieto.

G.C.

17.

Meu atonal do silêncio, para você deixaria nesse livro tudo que senti, deixaria tudo que pude ver e relatar, mas você sabe que muito se perde depois da escrita. O verdadeiro sentimento jamais será desvendado. Somos paisagens isoladas no meio das horas. Os livros que escrevi me parecem repetitivos igual a porra da vida, mas eles me enchem as mãos de alguma coisa que não sei explicar e que lentamente choram. Quantas vezes fui triste, quantas vezes fui dor, quantas vezes fui um coração que levanta toda manhã em busca de uma resposta satisfatória para o que me faz pensar e sofrer. Cortaram as asas que eu não tinha e a vida se apagou lentamente com o decorrer dos anos, o resumo do universo num espaço amarelo e profundo do papel. E você que me lê é mais uma paisagem isolada que poderá até sentir de algum modo o que senti e que entranhará em seu peito aquela distância de nós mesmos. Seremos a reclamação dos que amam destemidamente mesmo que sejamos o contrário disso. Explicaremos a grandeza a quem não sabe escrevê-la, mas que pode senti-la de um jeito que não machuca igual machuca em nós. Seremos atonais do silêncio, todos impossíveis e que se perdem com pressa, seremos nossos próprios fantasmas amargurados de tanto que sentimos e de como sentimos. E deixarei dentro desse livro o impossível do rumo silencioso, às vezes com alguma música triste que poucos conhecem. Escreverei em meu atonal de treva, escreverei em meu atonal de silêncio as palavras que cantamos no meio das horas amareladas do tempo.

G.C.

16.

Eu tinha o costume de caminhar à noite quando era mais jovem. Principalmente no verão, quando a luz permanecia por mais tempo no céu, porque era interessante em minha cabeça pensar num pôr do sol perto das oito da noite. O céu laranja que irradia uma leve e tênue tristeza. Lembro que numa dessas ocasiões choveu forte, mas era uma chuva de uma nuvem só, localizada num ponto do céu, quando você nota aquele fio de água turvando aquele pequeno espaço. Uma sinfonia silenciosa num ponto tão pequeno do universo. Vem a imagem dos pés encharcados dentro do tênis, verão em seu pico. As folhas farfalhando e o sentimento que engole e sufoca. Cada lembrança, cada faísca, cada memória. E nada – absolutamente nada – lhe será compensado. A insônia posterior é quase uma certeza, e me colocarei novamente nessas ruas pensando nos livros que li, na imagem mental que faço ao imaginar aquelas pessoas caminhando igual a mim, sem rumo, sem prescrições, sem porquês. O contraste da noite com o entardecer de antes. Luz e escuridão. A divisão que faz despertar o que éramos e o que somos sem saber qual lado é o certo, as situações que pensamos e imaginamos poder consertar num episódio hipotético, os cruzamentos morais, mentais e geográficos do que achamos ser. O terror e medo correm a pele e tudo é preenchido de escuridão, de chiaroscuros sublimes que queimam o percurso para lugar nenhum.

Era assim. Eu andava com um tênis velho, bermuda surrada, descendo e subindo as ladeiras de meu antigo bairro. Algumas horas cruzava com outras pessoas. Dentro de mim tinha o pensamento de que poderia ser ouvido, ser entendido e que elas também poderiam falar algo. Gostaria que soubessem que de alguma maneira poderiam falar aquilo que sentem sem serem julgadas, mas no fim, acho que sempre preferia a rua quando ela não tinha ninguém. Não precisava de companhia, talvez hoje ainda não precise. Só queria ser um componente invisível da noite, daquela noite.

Queria ser qualquer coisa condicional na qual pudesse me afogar e sumir no segundo seguinte, que a escuridão adentrasse meus olhos e saísse voando até a nuvem isolada de chuva mais próxima. Eu me pegava – e ainda me pego – nesses pensamentos todos os dias, sempre na mesma hora. Procurando dissolver essa ideia entre corpo e fantasia, consumar em mim a destruição dessa fronteira onde um e outro começam e acabam. Era o que fazia para esquecer o que me machucava, da dor que era por minha cara ao espelho todos os dias, da lembrança perversa de sentir gosto de metal na boca a cada desilusão, de ter que saber desesperadamente que devo representar algo que não sou, o nojo que sentia de mim por ter que fazer isso ou de fingir ser indiferente à destruição alheia, de não poder impedir a discrepância da vida.

E me perguntava nessas caminhadas como foram para todos que sentiram uma angústia semelhante dentro de seus corpos, em suas maneiras tão particulares. Do desejo infindo do apagamento. Dia, noite, chuva, sol. Tudo inútil pela falta de ambição no desejo maior de parar de existir. E parava de andar e olhava para o resto da rua por largos minutos, ansiando o que aconteceria nos passos seguintes. O corpo, sua máquina vibrante e tão silenciosa, gritando pensamentos e escurecendo caminhos para confirmar o que já sabíamos desde o entardecer de todos os dias. A percepção de uma parte de você proporciona uma liberdade falsa e esmagadora de sonhos. E quando nos vemos a primeira vez com então vinte e tanto anos, depois do fim de um casamento infeliz, completamente infeliz. Aquela separação mental que dá a liberdade, o marco zero, a possibilidade de conseguir de se virar para trás e enxergar quem você era quando, muito tempo atrás, ainda moleque, vislumbrava o instante mágico do tempo em que agora se encontra. Encontros e desencontros. E virei para trás e olhei para o passado, triste – obviamente – e movido pelas circunstâncias do momento. Imaginar como os olhares dos dois se encontraram, um deles cheio de vida, o outro um pouco mais sem cor. E o mais velho viu o questionamento ferrenho no olhar do mais novo: afinal, quem você se tornou, o que foi capaz de fazer em vida? E o velho teria sido obrigado a responder, ainda sem pensar em sair correndo: Nada, só queria subir para uma nuvem errática, mas andei por toda parte, escrevi livros sobre o que vi e senti, compus canções inúteis, levantei infinitas perguntas para mim e para diversas pessoas, mas ainda não consegui chegar naquela nuvem. Fecho os olhos. A nuvem parece um lugar impossível pra mim. Um lugar tão pequeno, mas enorme ao mesmo tempo. Afinal, qual é o problema? Se é que existe um problema. Queria poder dizer “amanhã partirei”, e compreenderia nisso uma mudança, uma ruptura com o que era e o que serei. Por que desejo algo tão simples aos olhos alheios? Volto a andar, queria caminhar até amanhecer, porque se penso um pouco sou obrigado a parar de andar. Não é toda a dor que pode ser aniquilada. Juro, eu tentei, tentei muito afastar esses caminhos, essas dores, tentei afastar essas coisas de mim.

Lembro da ladeira que subia todo dia pra ir trabalhar. Do ruído interno que a dor me causava nas pernas. As subidas que se você parar para descansar será incapaz de continuar. Uma parada de pernas que te atinge rápido e com força que então fica difícil respirar. E agora, nas caminhadas nas noites escuras e disformes são a única forma de salvação, a noite que você pode atravessar dançando do jeito que desejar, como em câmera lenta, igual Jesus teria feito na água, ou dentro da imaginação fantástica, no qual há uma ilha onde vive uma mulher que sabe ir até a nuvem; e se desloca pela água escura de uma maneira bonita, pomposa e esguia. Aquele dia da ladeira. Lembro que ia chover. Pra mim sempre vai chover. E escrevi num caderno: É a mesma chuva que costumava cair na minha infância, sempre antes de dormir. Ela cai sobre mim quando vou caminhar, ela cai sobre mim quando olho o entardecer, ela cai sobre mim quando volto do trabalho, ela cai sobre mim em meu quarto. E então a mulher que sabe o caminho para a nuvem aponta o dedo na direção da chuva e some. Tudo some. Não é isso que estou querendo sentir, mas acho que posso dizer que eu tenho um problema. Pois eu devia estar em casa, numa tristeza diferente dessa, mas não consigo me acomodar, pois a cama e a visão que tenho das paredes se tornam uma prisão da minha mente, tudo se apequena e por isso saía todas as noites. A nuvem. Acho que a nuvem é o nome que dou para o esquecimento. A mulher é aquela que vai me levar um dia para o esquecimento de mim, na rua de chão batido e não terei vergonha de não olhar pra trás quando esse dia chegar, que essa mudança atue de forma tão absoluta como a criança que risca o desenho que ela mesma fez, que no fim não se possa mais ouvir nada no tão sonhado esquecimento, a não ser o frágil som da ausência. Outros buscam a mudança, do mesmo modo que a busquei desesperadamente. Querem mudar a si mesmos – muitas vezes em vão – , mas para conseguir isso é preciso atravessar a noite, penetrar no pensamento dessas caminhadas e talvez deixar que a chuva modifique seus corpos e limpe as suas almas; deixar que a chuva os reeduque para coisas simples.

Não parece fazer muito sentido, eu sei, mas caminhar todas as noites também é se perder; seguir em frente quando mal se pode enxergar as próprias ideias: sentir, existir, pensar, e ainda assim ser invisível aos outros. Eu ainda sou invisível aos outros e no começo eu sofri por isso. Fechava os olhos ao pensar nisso e saía da rua em que estava para pegar um daqueles caminhos de pequenas vilas. Conheço o caminho e sei onde preciso virar; memorizei o caminho ao longo dos anos. Minha nuvem no chão. O amor não é infinito, pensei. Nada é infinito. Essa era a verdade. A eternidade veio abaixo e de repente a repulsa que senti me esvaziou para o que importava. O que importava, nesse caso, era andar rápido e só isso, sem olhar para trás, como fez o meu eu mais jovem, e encarar o próprio olhar do outro lado. Abrir os olhos deveria ser um ato de prudência, mas encarar a escuridão é extenuante. Abertos. Fechados. Tudo a mesma merda, penso, e uma melancolia vai se acumulando em mim, quando acontece alguma coisa contra a qual nada posso fazer. Penso de novo no passado. Consigo vê-lo, é claro, e não consigo decifrar o seu olhar, porque esqueci o que eu era. “Ei, você, caralho, olhe para cá!”, é como reajo ao desacontecimento.

A estranheza, o divino, o andar pela noite. Refletir sobre uma vida cheia de vazios. Vazios que se descobrem em algo, na permanência da nuvem. O reino. Sim, definitivamente o reino onde nada mais inútil é realmente necessário, porque aqui desse lado da rua tudo é invisível aos olhos. Isso me lembrou que recentemente entrei numa igreja. Não lembro exatamente o que vestia, mas era algo simples. Inclinei meus olhos para a imagem gigante de Jesus na cruz, e admiti sem hesitar que concordava com suas palavras, seus ditos políticos. Não sua ideia religiosa, como todos ali presentes faziam. O resultado é constrangimento e desgosto pela deturpação de sua palavra, de seu ideal. Eu me perguntava a cada minuto o que estava fazendo ali, por que permaneci tantos anos em dúvida. Permaneci na espera de ter uma resposta para aliviar a dor. Sim, foi o que fiz na minha juventude. E eram o que eles faziam ali naquele momento. Mas a completude não vem dali, mas da nuvem. Sim. Eu tenho certeza que é daquela pequena nuvem. Penso muito nisso quando estou sozinho, quando ouço outras pessoas conversando nos apartamentos vizinhos, os passos, as portas se abrindo e fechando. As palavras perdidas são tempestades secas, que desdobram a solidão diante de tudo. As pedras, o sorriso, o olhar, a grama, os olhos, tudo. Não se percebe o tempo no qual elas se perdem para vivar uma outra coisa, uma malha metálica que protege a facada, o sentido. E tudo se some na rotina. E não estamos bem, mas representamos tudo quando perguntados. E o mundo se choca com sua nuvem coroada, com sua boca que solta a palavra automática. Estilhaços de algo que inventamos. E tudo é silêncio na rua. Sempre foi, mesmo de dia, e sabemos disso. Tudo sempre esteve em silêncio, não percebe? E tudo piora com o tempo, exceto quando estamos com aqueles que nos entendem sem o dedo severo do julgamento, poder conversar sobre qualquer coisa na certeza de não ter os anos de prisão contados na mente. Ler sobre alguma história da dinastia Ming e tirar alguma sabedoria, submergir na arte que julgo perfeita dentro de sua imperfeição, ter como saciar dentro de mim e dos que me cercam da necessidade de unir beleza e harmonia ao mesmo tempo. Igrejas, templos, sua casa, a nuvem, a rua… tudo isso com suas saídas de emergência. E no final o grito: “eu estou bem, não se preocupem”. Sorrio e sigo para qualquer lugar. É o que fiz, é o que faço até minha fuga para um próximo entardecer. E volto a lembrar da ladeira, de como a subia e a descia na volta do trabalho. A casa que morei sumia lentamente de vista. Não sei por que sou desse jeito, não sei porque sinto essas coisas e também não sei porque questiono essas coisas, não sei se é comum, não sei o que é raro, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente a mim, mas para ser bem franco, é insuportável. Sim. Insuportável. Que o mundo não seja pleno, que o mundo não seja belo e completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo e voar para a nuvem. Sim, é o que eu quero. Que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence – mas nada me pertence –, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas na igreja, as pessoas bebendo nos bares e conversando sobre o que elas não conhecem; dar-lhes minha saudação final, íntima, meu adeus para sempre. E se tenho que fazer isso para poder evoluir então que sentido realmente faz? Qual?

Uma das Morellianas d’O Jogo da Amarelinha me fez isso, os homens que largaram o túnel no Monte Brasco, deixaram tudo para trás e foram se agarrar à poesia do ato, a filosofia, tudo – porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; não queriam elevar-se, queriam ter o que eles apenas tinham. Queriam cruzar a fronteira para dar em qualquer lugar. Assim, quando surgiu a oportunidade ele fugiram do túnel e foram cavando até saírem na casa de um professor. E nesse capítulo em especial, fica claro que os operários que estavam do outro lado deveriam ter seguido esse exemplo em vez de se obstinarem em um túnel inexistente, como é o caso de tantos poetas, músicos, pintores, seres que caminham na madrugada, com mais de metade do corpo para fora de seu próprio corpo, a altas horas da noite. Wishful thinking. É notório perceber que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais – até agora – tenha tomado consciência plena disso. É claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Morelli. É óbvio para todos que leram, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Sim, definitivamente. Mas tenho certeza que nada no mundo me faria ter o mesmo destino que os operários do Monte Brasco, jamais terminaria saindo em algum lugar que não fosse realmente calculado. Não. Nada desesperado – a não ser dentro de mim mesmo –, no meio dos oceanos de gente dos calçadões, ou dentro de um escritório entre cegos e surdos, e é possível que me falte a coragem necessária e tão arrebatadora, tampouco faria como os operários do Brasco e me tornaria uma outra pessoa, feliz. Sim, talvez feliz. Poder responder ao meu outro eu, tentando reunir tudo dentro de meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo – e por que não? –, juntando o eu a meu outro eu, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregado finalmente. Numa obsessão de tentar fundi-los nessa única pessoa que sou, mas não consigo, não posso fazer isso porque na realidade não há espaço suficiente. E por que desejo a nuvem? Não, não. Sei que posso acabar partindo ao meio, igual sempre aconteceu quando tentei fazer isso. Enquanto for esse que sou agora, haverei eternamente de sair caminhando pela noite como fiz, esquecido por todos, esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando em meus olhos, em meus dedos, em minha vida, em minha nuvem tão sonhada. Sim, eu sei disso. E naquela noite as nuvens se separaram, correram em diversas direções e em grande velocidade como se algo realmente importante estivesse prestes a acontecer. Não era nada, mas sempre queremos que seja algo. Amor, sorriso, a rua, a nuvem, as pessoas, o entardecer, o andar, o eu, o outro eu, você, ela, ele. Qualquer coisa. Sinto a cisão entre o que sou, o que fui e o que serei. Dói.

G.C.

Poema sem nome [11]

procuramos marcar o tempo
fatiar os anos
meses
dias
horas
segundos
e sabe-se lá mais o quê
e o que sobra não tem mais
para o amor
e viramos restos que passam
os dias
procurando a pessoa
que nos tire o vazio
porque a lucidez foi
penhorada
entregue aos senhores
do seu tempo
e somos isso
a esperança depositada
no grande Girassol
que rasteja
pisada
por tanta gente
apressada
fatiando sua vida em tempos
precisos
e também inexatos
em busca da glória
amorosa
profissional
econômica
mas sem acreditar
no meio
nesse meio que abre ferida
e que no fim é aprisionado
por qualquer coisa
que você jamais terá controle

amores e restos de gente
que rastejam

G.C.

15.

Depois daquelas horas juntos, pensava dias depois, caminhando sozinho pelas ruas. Pensei durante muito tempo que deveria ter dito alguma coisa que não disse. Ao escrever, agora, pensei na urgência disso, de chegar ao seu pé e dizer qualquer coisa. Dizer-lhe qualquer coisa como se fosse a última, numa redenção magnífica e primordial.

No caminho para o trabalho, durante muitas vezes, desliguei o ouvido de fora pra ouvir você todas as manhãs. Pensei naquela intimidade que o som nos traz do interior de nossas ruelas. Nessa intempestividade de haver a matéria que me faz, nessa vida que deu o dom (pelo menos alguma coisa!) da reflexão, estação após estação de metrô. Ao chegar, acabo dirigindo-me ao boteco vagabundo pra tomar um café. Percebo que tudo é radicalmente solitário. Tudo está caído sobre outro mundo que é impossível. Fecho a mão dentro dos bolsos num ritual patético e percebo como é belo este movimento que nos leva ao chão. Imagino que agora você esteja repousando num sono quase inconsciente, e aqui vou pela rua em direção ao trabalho. São nove horas e penso nos seus gestos absolutos. Sinto isso de uma forma quase desesperada, com a mão dentro dos bolsos, numa gritaria em silêncio.

G.C.

14.

Para meu amigo M.

Logo fará um mês que a barca afundou, Marcio. Sua barca em pedaços no fim de qualquer fim sem coisa, buscando a palavra correta para relatar o que se passava. A locução solitária e silenciosa do mundo, da vida carregando o olho de fotografias que a cada dia ficavam mais brancas. E a cada ano uma idade vigiada pelo interruptor apagado cada dia com mais tristeza. E agora tudo parou, talvez como você quisesse, porque pensando pra trás parecia sua vontade velada.

Penso nas memórias esquecidas, nas músicas perdidas em nossas conversas. Tudo pouco a pouco perdido na memória que me resta – e que você sabe – e que é fraca. Tudo não herdado. Esta noite antes de dormir pensei numa barca afundando com seu capitão, havia uma música. O movimento do vento terminaria de virá-la e conseguiria finalmente dormir. O vento é memória, meu amigo, é vento que corre, que apaga as velas que insistem na chama, igual palavras perdidas em meio ao solitário e silencioso modo de narrar o mundo.

Bater um vento, acender uma vela se fosse um rito da memória que sobrevive à própria memória que venta. A vaidade de acharmos que entendemos a morte quando somente pode ser compreendida na palavra, na música ou numa tela que ainda está molhada. Quando isso acontece é quando nos aproximamos de nós mesmos.

A barca afundou, mas a lembrança será vigiada enquanto eu estiver aqui, é uma promessa que faço enquanto esperamos o jubileu e seus restos que insistem na luz suspensa que a saudade descreve e impõe à palavra inexata, desértica e errante. Inevitavelmente sua.

G.C.

Poema sem nome [10]

certamente não lembrará pois foi há tanto tempo
e o que aconteceu pode
não ter significado nenhum
para você
mas para mim sim

aquele garoto triste
eu não sei mais quem era
se era eu
ou se era outro eu temporário
mas lembro dele com um
amor infindável
do mesmo amor de um pai
ao embalar seu filho noite
adentro
no nascimento
na morte
porque fui esse garoto antes
de nascer
de viver
e de tudo que se seguiu
dentre tantos anos

você partiu
eu fiquei
e isso foi um sinal
pra mim
das coisas que
aconteceriam
dali por diante

o destino que nunca
acreditei
me pregou essa peça
porque os tristes de coração
padecem disso

vislumbrei nosso instante
que para mim significou
uma vida por muito tempo
a porta semiaberta para
que eu entrasse
já não sabia
[naquele momento]
a busca impossível
dos pormenores
da vida que tive
completamente
fodida ao te ver

ao piano
tocando aquela
música que
não me atrevo
a dizer o nome
da melodia devastada
de solidão
da leitura concentrada
do seguimento matemático
das notas
era além disso
era música na ponta
dos dedos
do sentimento de covardia
de abrir o coração
de reconhecer-me
naquela melodia
todo um quebra cabeça
de amor
de complexidades
sem nexo algum

lembro da exposição que
aquele momento me causou
toda minha fragilidade
minhas fraquezas

tristezas
defeitos
a sensibilidade brutal
que essa urgência
me causou
[e que ainda causa]
de tudo que me fazia
criar até a dor física
surgir galopante
da sedução que tentei
repetir sozinho
músicas
cartas
projetos de poemas
pinturas
qualquer coisa

apareceste devagar
em minha vida
e foi assim que tudo
fez sentido naquele momento
de quando minha solidão
foi emparedada e de
quando a música de certa
forma me salvou
à minha maneira

meu boicote pronto
florido
verdadeiramente
verdadeiro

e lembrei por anos dessa
cena incrível
da mulher ao piano
que me pediu para
não continuar
que ninguém jamais
havia feito tal melodia
nem aqueles que amam
loucamente
desesperadamente
como se isso fosse realmente
amor
mas sim desconforto da alma
falta de coragem de viver
algo saudável em nossos redores
nossas peles
e sofri com nossa ausência
e me puni severamente
ao longo dos anos por isso

e tu jamais soube da significância

que para mim teve aquele momento
do amor que me dedicou naquela
transbordada melodia
do desparamento
da vida
da distância infinita
do toque entre peles

certamente não lembrará
mas eu sim

a vida passou tão depressa
tudo foi há tanto tempo
numa velocidade tão
incrível
contornos de memórias
fustigadas
desbotadas
que teimam em lembrar
mesmo no apagamento
e nos levam para todos
os lados
como troncos podres
na corredeira débil
a viagem certeira
para a queda

para o aprisionamento
do que resta dos dias

não dormi por muitas
noites
ao longo dos anos
porque o peito doía
era sempre o peito
essa ilusão fodida
mágica e
tenebrosa

era raro uma noite em que
dormisse antes das onze
porque o quarto
[suas paredes]
falavam comigo
as coisas dentro dele
os desenhos que o destino
impôs à parede num rito
futurístico que para mim
faria sentido naquele momento

e não
não era eu a fazer o sentido das coisas
era a vida

com seus muros esperando
sua mensagem esperando
algo para poder crer
para poder crer novamente em
deus
em qualquer coisa
para poder ver cor
nas ruas novamente
vida em preto e branco

[só queria me sentir protegido]

queria uma mensagem sua
queria poder abrir minha porta
pra você também e que a adentrasse
afundada em meus transbordamentos
e que arrancasse de vez minha tristeza
para nunca mais precisar escrever

por que lembrei de ti?
por que lembrei daquele instante?
por que faz sentido pra mim e não
para você?
por quê?

tu me ensinou a verdadeiramente
criar naquela tarde
e tu veio até mim para isso
e eu quis mais
de meus dramas burlescos
de nosso fim arrancado
por deus
do ordenamento de ter
que criar para espantar
meu desespero

ordem de partida
para a guerra de
nós mesmos

você esteve viva em mim
por anos
corri para sua trincheira
em tentativas falhas
sempre morria
todos os dias
numa razão devastadora
de lutar contra o óbvio
mas orgulho-me de
dizer que você foi meu
farol

mas que agora renuncio
para poder continuar
vivo

da cena de dar alguns passos
de tirar os sapatos para não
fazer barulho enquanto tocavas
de me afogar em sua imagem
ao teu lado
absurdamente ali
da última vez que te vi

e te dizer o quanto era
importante e do quanto
precisaria de momentos assim
[só que não disse nada]

[aprendi algo contigo que jamais
esquecerei]

levarei esse episódio
[e só esse]
comigo para sempre
teu bem querer
quem sabe seu amor
mais importante pra mim

do que foi para você
de como compartilhamos
nossa incapacidade de jamais
dizer um
eu te amo
de como lamentei isso
porque você foi uma parte
de mim
que queima
que dilacera durante as madrugadas
e choro desesperadamente
porque queima
porque dói
porque fode com tudo
guerra perdida
guerra que agora abro mão
e acho que fui até longe demais
muitos teriam desistido antes

toda noite há um redemoinho no teto
são nossas imagens rodando no gesso
de como foi bom o pouco que tive

lembra daquela tarde?
[obrigado por ter cuidado de mim]

G.C.

13.

Depois de tantos anos acabamos aprendendo alguma coisa com a ausência. Aprendi a escrever menos, aprendi a prestar mais atenção na cartografia dos olhos. Os sinais que deixamos – com o tempo – pra lá e não sabemos mais como interpretar. Tudo é, depois de anos, um catálogo, uma mancha nessa cartografia. E caímos para cima, do teto que encaramos antes do sono, nas linhas que machucam a parede e sopram seus tempos para uma fuga. O sonho que durou dez anos em alguns minutos, da última tragada denunciada na aquarela que paira no ar. Sim, a ausência pode ser traduzida em bilhões de esferas e idiomas e ainda assim quando bate aos olhos, consciente, guarda uma beleza que só pode ser extraída da própria vida que queima.

G.C.

12.

Pouco tempo atrás fui a um velório de um desconhecido. Vi as pessoas chorando, clamando por deus, rezando e implorando uma passagem tranquila ao rapaz. Morreu jovem. No meio daquela gente eu fiquei pensando no que se tornou a minha vida, no tempo em que passei em estado de sonho, no tempo que passou vivido em ilusão, numa mentira tosca e cruenta de mim mesmo. Vivi um futuro imaginado e ao ver o rapaz morto senti finalmente a falta da razão das pessoas, a minha própria falta de razão ao viver do passado e eles de deus. Um rio que corre solitário em meio ao que os mortais jamais saberão, jamais.

Senti naquele momento a vida passada em vão, um rio que corre mais rápido que eu, mais depressa que meu desejo de finalmente não questionar mais nada. O deus de vocês põe e tira sem uma explicação lógica, o que resta é rezar à sua vontade, não ao passado corrido em futuro presente, não ao fato da dúvida, pois a dúvida nunca foi confortável, nem para mim. Enfim, fui tudo aquilo que não pude ser e senti isso ao olhar a sala ao lado, com outro velório, só que vazio, sem uma alma para lhe dar as placas, setas, a prece, a música ou a ilusão. O palco de deus é onde corro nu, numa ilusão que penso ser real para um reino onde as coisas não são tão justas como manda qualquer passagem. Nossa hora é amanhã.

G.C.

11.

O GLORIOSO ESPETÁCULO DO ABSURDO

Calamos diante o absurdo. Sim, nos calamos. E nos tornamos apenas um corpo biológico, uma ampulheta irregular que é incapaz de datar aquilo que para nós – na fuga – é incompreensível. Viramos uma ruína musicada nas canções, somos escaneados pelos poucos fragmentos que passam por nosso filtro, o olho, a pele, o ponto cardinal que tangencia a recusa do absurdo. Sim, nos calamos. E o que mais tangível foi não passou de tão somente aquele nosso vazio que tentamos explicar escrevendo outros absurdos que poucos entenderão.

E o peso permanece, mas a gente se acostuma igual nos acostumamos com tantas coisas. Ah, vai doendo aos poucos, mas a gente aguenta, e caem e não se consomem, não viram outra coisa, o peso permanece igual o plástico que demora mil anos para se decompor. A morte em vida vira mais a uma coisa a se calar, a cegueira vira mais uma coisa a se calar, o fato de se adoecer numa sociedade doente, num sistema doente e mesmo assim você defender os dois dentro de um individualismo que é calado. Aliás, estuchado pelo próprio sistema.

O resultado é vestir a máscara e dizer “sim, está tudo bem” quando não está. E testaremos os meridianos com nossas fugas para que possamos aguentar mais um dia, e essas duas pessoas que vestem essas duas máscaras não se tocam, jamais se tocarão, pois quando isso acontece a loucura chegará com suas razões inexplicáveis, calando mais inquietudes e berrando para todos as verdades que calaremos diante o absurdo.

E surgirá a história renegada, os poucos que mostrarão algo novo e serão alcunhados de doentes dentro de encruzilhadas fedendo a senilidade do claustro cardíaco que é calar, mas calar por um modo de sobrevivência. E no meio de tudo teremos nossas máculas para lamber quando for necessário, esse salseiro de tantas ausências, de máscaras que tornam as ruas vazias, que tornam as vidas e os dias vazios.

A muitos resta o silêncio, é compreensível. Aqui poderia ser um ponto de fuga pra eles igual é pra mim. Um entardecer sem sol, um poente sem nuvens, onde é impossível esconder ou calar os nossos mais tenebrosos fantasmas.

Absurdo-me.

G.C.

10.

O papel é a verdadeira parede, a parede é o verdadeiro papel. Escrever nos dois com seus cacos que arranham sua pele, sua temível lentidão que os dias chuvosos tratam de emancipar. O som que guardo dentro de mim, a música que é apenas o acaso de um caos que se for desvendado se tornará mais uma ordem cartografada futuramente por alguém. E o que isso importaria para mim? O que importaria para a pele que arranho firme, fiel e verdadeiramente?

Na casa de minha mãe tem um relógio que rasga essas paredes e todos os papéis e todas as músicas. O relógio que demarca o tempo, a hora de nascimento e de morte igual aquilo que escrevemos. Tudo dependurado por uma energia consumida na fricção do ato. A lentidão que esquece a termodinâmica dos horizontes.

Tantas paredes, tantos papéis, tantas chuvas (mas que caem de infinitos modos ainda não cartografados), tantos relógios, tantas músicas, para que no fim nos tornemos calabouços de nossa própria desobediência. E escrevo na parede, no papel, não importa o lugar, acabamos absorvendo sua morte para fazer um fagulho de vida que durará segundos, agulhas finas riscando a cartografia de todas essas coisas porque a morte nunca é suficiente para quem é invisível, para quem se fecha em pesadelos e transforma isso em algo belo para poder dar aos seus observantes as suas quinas fechadas, desgastadas e silenciosas do grito. A sua e a minha mudez.

G.C.

9.

As máscaras daqueles que fingem não sentirem. A abdicação forçada daquilo que para as pessoas é essencial. A sensibilidade notada não pela ausência, mas pelo fingimento de não a ter. Sensibilidade e razão? E por que esmagamos as pessoas e nossos filhos ensinando-os a virarem cavalos em busca do primeiro lugar? Desumanizar para conquistar. Humanizar e perder em seguida. Atravessar o caminho alheio e não sentir nada com isso. O modo de agir está nos manuais e agir seguindo sua didática é um retorno à dor, mas somente a sua dor. Porque quem vê para, quem ouve corre e quem sente considera o mundo de fora muito mais que uma matéria para se fazer resistir. A máscara que pesa e nos curva com o tempo, vira nosso escudo para a síntese da vida. Afinal, o que seriam das pessoas se fôssemos apenas humanos?

G.C.