8.

A opinião não era unanime. Alguns achavam que deus escrevia errado de propósito, outros disseram que ele não sabia escrever e que entortava as linhas por pura imprudência. Afinal, o que importaria, já que deus avançou o sinal vermelho? Não caberia a nós, meros mortais, dar-lhe um caderno para aprender a escrever e também em manter a linha reta. O suicídio é uma vitória de quem? Também discutíramos horas, alguns achavam que a vitória era de deus, supondo ele ser sádico. Outros creditavam a vitória ao que se mata, uma minoria não creditara a vitória a ninguém. A imprudência de ambos – deus e dos homens – é que torna a vida temerária, cada dia mais cara e excessiva. Seus caminhos, suas palavras tortas e incompreensíveis que fodem com a emoção. Não sabemos ler ou ele não sabe escrever? Os homens sobrevivem, saem feridos e os que ficaram que de alguma forma ainda sorriem, todos contam seus causos como se fossem milagres – e talvez até sejam – e a religião trata de transformar isso em sua própria emanação. O ódio, o riso, o amor, a alegria, seus caminhos também tortos. Tudo virou uma opinião tão torta quanto as linhas de deus. A opinião não era unanime, nunca foi. Alguns acham que deus estava brincando, outros que ele pisou num monte de merda e escorregou e bateu de cabeça. Alguns mais sábios diziam que depende do ponto de vista. De fato, dependeria do ponto de vista, dos olhos entortados ao qual fomos fielmente forjados. Por quem? Não importa. Um dia eu falei com deus, mas ele não respondeu, talvez seja surdo, mas essa é outra hipótese ainda não discutida. Nesse dia eu estava numa igreja, aliás, o último dia que entrei numa igreja. E já que existem tantas igrejas no mundo eu presumi que ele estivesse muito ocupado – salvo a hipótese da surdez, claro! – porque afinal, até nós humanos nos distraímos ou nos perdemos quando muitos nos chamam ao mesmo tempo. No lugar de deus talvez fizesse a mesma coisa e não responderia ninguém, sairia porta afora caminhando sem rumo, perplexo, tentando entender a incompreensão daqueles que não acreditam em mim. Tentar entender de alguma maneira a falta de comunicação que eu tenho com os outros, nessa espécie de autismo sabido e sem solução. Deus está sozinho? Também seria uma discussão. Se eu estou, por que ele também não poderia? Porque estar só num mundo habitado por tantos outros, com nossas solidões que se comunicam em diversos níveis, sim, isso seria uma declaração de existência, sua declaração do brutal, da eminência de que a opinião nunca é unanime, de como assistimos as mixórdias de deus ou de como ele assiste as nossas. De ver Whitman metido num manicômio, ou qualquer outro Twain na sarjeta ou algum Bukowski metido num puteiro. Tudo seria um ponto de vista que não se converteria num silêncio guardado com paz, com seu triunfo cego e imediato de pensar ser algo, de fazer parte de algo, dessa fodida e talvez até deliciosa falta de importância coletiva. Se pessoas assim podem guardar tantos pensamentos, heresias e sentimentos, podemos supor que todos estão inacreditavelmente sós, rodeados por questionadores e deuses e vidros sujos procurando algo, alguma coisa. A opinião não era unanime. Alguns achavam que os homens eram animais dramáticos capazes de internalizar o que os outros bichos manifestam em outros tipos de linhas, mais retas, disseram alguns, outras mais tortas que as de deus, mas visíveis. A objetividade já não era mais um cerne a ser discutido, já que a poesia e filosofia tomaram conta da preciosa comédia que é a solidão, com seus abraços falsos, seus cumprimentos tão diplomáticos quanto um adido suíço. Tudo era tão barato quanto qualquer pensamento. Somente esse otimismo que tiramos do cu poderia ser algo para dissimular a vida e até mesmo deus, os contatos com o desconhecido como as folhas que se batem no ar antes de chegarem ao chão. Tudo isso poderia ser o quê? Céu ou chão? Homem e sua visão limitada ou deus? E absurdamos a vida assim, transformando o que apenas deveria ser dentro do ser em algo violento que saltam aos olhos do próximo que pisam errado na borda, que esticam a linha daqueles que não sabem escrever. O amor, uma elegia que tão logo verdade, deixa de ser verdade. E o que é verdade? A opinião não era unanime. E a consciência de ser supor algo já estava tão longe e tão perto como qualquer solidão, no cinema, na biblioteca, no bar ou no puteiro. Tudo era paradoxalmente o cúmulo das solidões acompanhadas de outras pessoas também solitárias, todos alheios a todos. A opinião não era unanime sobre deus, ainda. Ainda não se chegaria a um consenso sobre isso, porque se conhecendo a outra parte, da qual nos aproximamos ou repelimos com nojo, a verdade jamais poderá ser alcançada, porque não cabe a nós o julgamento do que pode ser ou do que não pode ser. É o reconhecimento – sem ter o reconhecimento – de nosso erro. Sua lembrança, sua redação em linhas tortas que ameaçam e fodem a memória.

G.C.

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